Durkheim
estava certo, no final das contas. O suicídio é mesmo um fato social e exterior
ao indivíduo em sua essência. Conviver em sociedade suga todas as nossas
energias. São tantas regras a seguir, padrões para considerar, pessoas para
agradar... E tentamos tanto agradá-las que esquecemo-nos de agradar ao nosso próprio
corpo.
Corpo?
Meu corpo? Minha propriedade, minha casa, meu refúgio? Ou seria ele apenas mero
instrumento que aqueles lá de cima, os privilegiados, utilizam para me
controlar, me marcar, me docilizar? Já não sei. Talvez não seja nenhum dos
dois, talvez seja ambos ao mesmo tempo. Talvez seja branco, talvez seja pardo.
Ou negro. Talvez seja alto, magro, belo, esguio, ou talvez não. Talvez seja
invisível, intocável, fragilizado e perdido. Somente mais uma marionete no meio
da multidão.
Já
não sei mais sobre meu próprio corpo. Não o possuo. Meu corpo não é meu, mas
deles. O único corpo que conheço é aquele, do qual disseram que faço parte: uma
tal de sociedade. Dizem que sou importante órgão neste grande complexo
organizacional a qual deram o nome de Sociedade, e seu bem deve ser colocado como
minha prioridade. Eu, indivíduo? Não existo. Agora vivo para Sociedade.
Sociedade
me apunhala pelas costas, a danada. Durante toda a minha insignificante existência.
Quando meu corpo ainda é pequeno, frágil, manda-me para um presídio denominado
Escola. Lá, recebo um uniforme, que me deixa exatamente igual às outras
crianças. E não só a roupa é uniformizada! Para meu espanto, sentamos todos em
carteiras desconfortáveis, sob o mais rigoroso regime quase ditatorial de um sargento,
e somos proibidos de comunicarmo-nos com o corpo ao lado. Dizem que um dia vou
ser alguém na vida. Mas por enquanto, não tenho querer. Sou apenas uma mera
glândula anexa no grande organismo do qual faço parte. Passo na Escola,
conforme Sociedade me instrui, metade do meu dia. E metade também da minha
vida.
Depois
de lá sair, Sociedade promete ser benéfica a mim. Ouvi por aí que, depois de
meu PhD em Economia pela Universidade de Harvard, vão me conceder um lugar ao
Sol. Passarei de mero órgão sem valor algum e virarei o cérebro de nosso corpo.
Serei o cérebro, talvez! E quando já me imaginava trocando sinapses com outro
neurônio, Sociedade submete-me a longas jornadas de trabalho, oferece-me um péssimo
local laboral, um novo sargento, e novamente não posso comunicar-me com o
colega ao lado. Não entendo. Dizem que devo me preocupar com o grande
organismo, mas não me permitem trocar uma ideia, tomar uma cerveja, aperitivar
uma batata frita com este outro pequeno corpo ao meu lado.
Na
verdade, não me permitem fazer isso nem mesmo sozinho. O trabalho que Sociedade
me concedeu tira-me todas as forças e o ânimo para realizar atividades
paralelas. Quando chego em casa, às onze e quarenta e sete da noite, todos os
dias, seis dias por semana, tudo que quero fazer é descansar as engrenagens de
meu próprio... Como é o nome daquilo, mesmo? Corpo.
Corpo.
Organismo. Vivo. Fadigado. Oprimido. Docilizado. Animalizado. Latente.
Protesto!
Já chega.
Corpo.
Mutilado. Estirado no chão de madeira podre e barata. Envolto por um sangue fresco
e rubro. Sangra. Um. Dois. Três. Sociedade? Não responde. E a vida se foi.
O
corpo sangra. A Sociedade não.